Rádio Muzangala

PRIMEIRA CRÓNICA DE UMA ÁFRICA QUE CRESCEU NO EXÍLIO

 PRIMEIRA CRÓNICA DE UMA ÁFRICA QUE CRESCEU NO EXÍLIO

Alegrias e as tristezas da África

Maio de 1997, o início do crepúsculo de um século que revelou as alegrias e as tristezas da África. As divergências e convergências de um continente por reinventar. As dúvidas e certezas de uma parcela do planeta com fracturas de todas as cores: a social, moral e, the last but not the least, a educacional. 

Nunca se falou tanto da África como neste crepúsculo de século. É verdade. E sobretudo do território do continente a que pertenço. O levantar de vozes e o diálogo de armas quando faltavam apenas vinte e cinco anos para o final de século. Creio que nessa altura se iniciaram, bem ou mal, as obras de um edifício situado hoje na costa ocidental do triângulo invertido, ocupado essencialmente por ilhas. E estas faziam brotar um fenómeno por estudar em pleno retrocesso da cultura administrativa do grande mercado.

Era o anúncio de um crescimento no exílio por registar. Era ainda a compilação e metamorfose de espectáculos desenvolvidos sucessivamente em Nankuro, Mombaça, Alvor. E, posteriormente, em Gbadolite, Bicesse, Abidjan, Namibe e Lusaka.

Por vezes, ponho-me a pintar a minha casa sem saber as tonalidades que vou usando. Daqui a uns meses vou ficar saturado por essa paixão de restauração emblemática de técnica por rejeitar, dizia a mão estranha que tinha os seus dias orientados para o hino de despedida.

Eram cinco horas quando entrei para a piscina que o Hoji ya Henda, Patrice Lumumba, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane e Franklin Boukaka, desejariam encher de discursos memoráveis. Precisava de frequentadores, essa piscina de água turva. Era uma aldeia meia-americana. Com rios da África e árvores do velho jardim. As montanhas abandonadas pareciam transmitir por contraste vozes de gente pacífica. Todavia, a piscina não estava isenta de uma nova eclosão das calamidades que nos vigiam há mais de duas décadas.

Angola esperava que por ela passassem outras Angolas que a África albergava. E, a escassos kilómetros, contemplávamos as chamas dos grandes lagos. O leopardo, pálido e apático, sonhava com a ressurreição de uma governação que integrasse as aves da comunidade.

Na capital cantavam velhos reis com intenções profundas de imortalizar suas assinaturas. A política de adultos, embora tivesse entrado por noites castigadas, era ainda conduzida por adultos. Aí, residia alguma dose de alegria. Na rua e nos palácios de vidro. Era uma história por celebrar. E oferecer aos chineses da quinta geração.

Preocupava-me, no entanto, em revisitar pirâmides esquecidas por éguas que ainda podiam povoar o terço da quitanda principal. Como não poderia deixar de ser, em repartidas estradas, umas falantes e outras mudas, minha mão desenhava os contornos de Calomboloca, Trinta e Um de Janeiro e Balombo.

Do palácio do ancião que usava bengala e lentes de contacto, eram visíveis as sementes que dispersavam o amor à diversidade. O dia e a concórdia se perdiam em diálogos intermináveis. Por todos os caminhos, lia-se a fábula da ovelha que coleccionava selos e notas estéticas. E as aves de penas descoradas chegavam à tenda. As árvores da rua namoravam à porta da cidade que ficara sozinha.

Na música dessa ladeira, Angola procurava abraços que pudessem testemunhar a essencialidade de manifestações irrisórias. Dia visível em que era possível identificar-se as múltiplas cores que as exéquias da cadela ofereciam… A ausência da comunicação tinha o grandioso saber erguendo uma memória instantânea que apelava para as cinzas dos sentidos e do corpo.

O palácio do ancião ficara envolvido de deserto. À volta, começaram a desfilar cortinas de fumo cinzento. Tudo se desfazia sem que se observasse uma constelação de ruídos, vozes humanas, intempéries ocultas e sinais de noite.

O recurso às lentes de contacto era um facto que pertencia à história. Já o ancião deixara de interrogar o deserto que se desenhara diante dele. Seria um caminho sem regresso. Era a rotura imóvel. Ao sangue solene que despertava o ancião, eu endereçava votos de regresso definitivo ao passado.

Crescia a fertilidade. Mas havia mais folhas estéticas para os que já as possuíam em colecções e menos para os que acidificavam o estômago. Nos caminhos que conduziam para a ambição livremente assumida, imagens de monstruosidades e palavras de salvação não cessavam de dialogar.

Pela primeira vez, encontrara-me com uma enorme silhueta que acabava de percorrer meia-dúzia de aldeias à procura de um lugar singular, deserto, abandonado e escondido para os seus últimos dias.

Reter os passos da silhueta era uma penosa equação que se aproximava do acto de deixar o enclave para os homens de Cabinda. Na baixa da freguesia, os habitantes mais atentos ignoravam que estavam em plena campanha para o advento da música predilecta em história segunda.

A delicada página de história política deixara de produzir heróis. Os da nova geração estavam no relevo descontínuo da cidade que conseguiu chegar ao leito do ancião que usava bengala e lentes de contacto através de uma antropologia cultural concebida pela cor dos acontecimentos e descodificada por sobas que procuravam organizar e proteger a liberdade individual.

 João Maimona -Poeta, dramaturgo e ensaísta

Rádio Muzangala

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Relacionados

WP Radio
WP Radio
OFFLINE LIVE